Sumário
Outubro de 1980, Atibaia, SP — Gustav Franz Wagner estava morto.
Um inquérito policial da Delegacia de Polícia da Estância de Atibaia, datado de 3 de outubro de 1980, investiga a morte do ex-guarda nazista conhecido como “a Besta de Sobibor” e procurado por crimes de guerra. O documento, registrado sob o número 389/80, aponta que Wagner foi encontrado sem vida no banheiro de uma residência no bairro Pedra Grande, em Atibaia, com indícios preliminares de suicídio.
- NOTA DA REPORTAGEM: dada à extensão das informações apuradas com base em documentos oficiais, disponibilizados por via de Lei de Acesso à Informação e outros meios, a reportagem foi dividida em quatro partes, cada uma dando continuidade à anterior de maneira cronológica.
A Portaria informou que Gustav Franz Wagner foi encontrado morto por volta das 14h do dia 3 de outubro. As primeiras providências incluíram a anexação do boletim de ocorrência, a intimação de testemunhas para depor em 20 de outubro e a solicitação de exame pericial no instrumento utilizado.
O VTV News obteve com exclusividade os autos do inquérito policial que investigou a morte de Gustav Franz Wagner em Atibaia. O Boletim de Ocorrência número 643 de 1980 detalha a vítima como “Wagner Gustav Franz, de 69 anos, viúvo, de nacionalidade austríaca, natural de Viena, e que trabalhava como caseiro em um sítio, onde o fato ocorreu”. Ele possuía um registro no Deops (Departamento de Ordem Política e Social) sob o número 313.706.

Relato das testemunhas e histórico da vítima
O histórico da ocorrência, conforme relato da testemunha, indica que Wagner foi visto no interior do quarto com uma faca antes de entrar no banheiro. Ao chegarem à residência, outras duas testemunhas encontraram a casa trancada. Após conseguirem entrar, encontraram a vítima sem vida e ensanguentada no banheiro.
Um Auto de Exibição e Apreensão registra a faca utilizada, com lâmina pontiaguda, cabo de massa plástica preta e manchas de sangue. O Auto de Levantamento de Local e de Cadáver descreve a cena do óbito, com o corpo de Wagner sentado no canto do banheiro, com uma faca sobre sua perna esquerda e grande quantidade de sangue no chão e nas paredes. Foi encontrado um ferimento perfuro-inciso na parte posterior da mama esquerda do cadáver.
A reportagem localizou a testemunha e locadora da casa onde Wagner foi encontrado morto, porém não conseguiu contato com a mulher que hoje reside em Atibaia.

Conexão com crimes de guerra e transtorno psicológico
Os depoimentos das testemunhas, ambos parentes da proprietária do sítio onde Wagner morava, revelam informações sobre o passado da vítima e seu estado mental.
A proprietária do sítio, ainda viva e residente de Atibaia, informou que Gustav, após a morte de sua genitora com quem convivia maritalmente, passou a residir em sua propriedade. Ela revelou que, em meados de 1975, surgiram reportagens sobre Wagner, o que o levou a se apresentar ao DEOPS em São Paulo. Ele ficou preso por aproximadamente um ano, período durante o qual tentou suicídio por três vezes, inclusive ingerindo o vidro de seus óculos e arremessando-se contra as grades da cela. A proprietária da casa afirmou ter conhecimento de três pedidos de extradição contra Wagner, referindo-se ao processo no STF. Após ser solto, ele voltou a residir no sítio dela.
Segundo a testemunha, na última semana de vida, Wagner estava muito nervoso, dizia que “veio alguém na minha janela esta noite” e que “via muitos judeus na sua frente”. Ela concluiu que Wagner estava psiquicamente muito abalado, especialmente após sua amante viajar para a Alemanha e ele ficar ansioso com a espera pelo retorno dela. Ela também relatou que Wagner já havia tentado suicídio com um canivete em São Paulo.
O tio da testemunha confirmou a história de Wagner ter convivido com a mãe dela e, após a morte da companheira, ter ido morar no sítio. Ele também mencionou as reportagens sobre os pedidos de extradição de Wagner por três países, a prisão em Brasília e as tentativas de suicídio na prisão.
O homem descreveu o estado mental de Wagner, que “não estava sadio”, dizendo que “estava sendo perseguido por judeus” e que tinha “visão de coisas que não existia”. Ele reforçou que Wagner “estava acabado” fisicamente e mentalmente.
Laudo necroscópico e conclusão do inquérito
O laudo de exame de corpo de delito – exame necroscópico, realizado em Bragança Paulista, confirmou a morte de Gustav Franz. A causa foi “anemia aguda” provocada por “laceração de pulmão esquerdo, produzido por ferimento provocado por arma branca“.
O relatório final do inquérito policial reafirma que Wagner foi encontrado morto no interior do banheiro de sua residência. O inquérito reuniu depoimentos das testemunhas, o laudo necroscópico, o auto de exibição e apreensão da faca, o auto de levantamento de local e cadáver, o croqui e fotografias do local.
Em 4 de novembro de 1980, o Promotor Público Substituto Mauro José de Almeida, em sua manifestação, solicitou o arquivamento do inquérito, afirmando que “restou definitivamente provado que a vítima Wagner Gustav Franz […] utilizando-se uma faca, […] suicidou-se“. A juíza Rosemberg Marson, em 19 de novembro de 1980, acolheu o parecer do Ministério Público e determinou o arquivamento do inquérito por considerar que se tratava de suicídio e que “não houve a existência de crime”.
A morte de Wagner foi pouco retratada na mídia local. O popular “O Atibaiense” se absteve de tratar de sua morte com tanto fervor quanto o concorrente, “Jornal de Atibaia”. O veículo foi um dos poucos da mídia que dedicou uma capa para retratar a morte da besta do Sobibor, um dos mais temidos homens do regime de Hitler. Para além disso, possivelmente o Jornal de Atibaia foi um dos únicos da região a estampar a história desta maneira, com uma manchete única: “Morre um homem…e ninguém chora”.

Segundo a matéria do jornal, o funeral foi marcado pela presença de 12 pessoas, dentre elas a maioria repórteres. “Estava apenas nós 3. Os dois da funerária, pessoal da imprensa e o coveiro”, escreveu. Wagner foi enterrado no cemitério do Alvinópolis, em Atibaia, após chegar do IML de Bragança Paulista. Na reportagem, um dos entrevistados narra que duas pessoas em específico estiveram presentes no funeral de Wagner. Dois alemães que não foram identificados: “além dos repórteres, havia um pequeno grupo, dois alemães que viviam com ele”.
A “Besta do Sobibor” que, se for seguido a defesa inicial de Marx, “pode ter sido” um dos homens mais temidos da Segunda Guerra Mundial. Mesmo após anos de ter estado à frente de uma das maiores atrocidades humanas, ao passo de mexer com o tabuleiro geopolítico do mundo, ele havia conseguido provocar uma turbulência às instituições brasileiras, à sua diplomacia e à credibilidade do país no contexto internacional, durante um período repressor.
Tanto Stangl quanto Wagner morreram um ano após seus devidos julgamentos. A irônica diferença é que, enquanto seu dirigente morreu preso, Wagner morreu solto. A prisão psicológica de Wagner, no entanto, se mostrou sua maior condenação.