Sumário
Julho de 1979, Brasília, DF — Durante o regime militar brasileiro, em 1978, o Supremo Tribunal Federal indeferiu os pedidos de extradição de Gustav Franz Wagner, ex-subcomandante do campo de extermínio de Sobibor, na Polônia ocupada pelos Nazistas durante a Segunda Guerra Mundial. Responsabilizado por ao menos 250 mil mortes entre 1942 e 1943, Wagner havia sido descoberto no Brasil pelo caçador de nazistas Simon Wiesenthal, com apoio do jornalista Mario Chimanovitch. O caso gerou reações internacionais e foi marcado por entraves jurídicos promovidos pelo então procurador-geral da República, Henrique Fonseca de Araújo, que alegou prescrição dos crimes e ausência de legitimidade de Israel como Estado à época dos fatos.
- NOTA DA REPORTAGEM: Dada a extensão das informações apuradas com base em documentos oficiais disponibilizados por via de Lei de Acesso à Informação e outros meios, a reportagem foi dividida em quatro partes, cada uma dando continuidade à anterior de maneira cronológica.
Embora os pedidos de extradição estivessem embasados em crimes de guerra, genocídio e crimes contra a humanidade, o STF optou por interpretar o caso conforme os marcos legais brasileiros vigentes, especialmente o artigo 109 do Código Penal, mantendo o entendimento de que a retroatividade da lei penal somente é admitida em benefício do réu, segundo o princípio do in dubio pro reo. Gustav tinha 68 anos quando foi julgado, o que, segundo os ministros, também justificaria um tratamento supostamente mais justo no território nacional.
O processo foi encerrado em 21 de junho de 1979, quando o STF, por unanimidade de votos, negou todos os pedidos de extradição. Os ministros entenderam que os crimes deveriam ser tratados como homicídios qualificados, prescritíveis sob o Código Penal então vigente, e que não haveria base legal para aplicar retroativamente a Convenção sobre Genocídio de 1948.
Segundo especialistas ouvidos pela reportagem, na ocasião, o Brasil não possuía tratados de extradição em vigor com os quatro países requerentes: os acordos com Israel, Polônia, Áustria e Alemanha só seriam celebrados posteriormente — respectivamente em 2009, 2019, 2023 e, no caso alemão, ainda inexistente. Mesmo que a ausência de tratados não inviabilize tecnicamente a extradição, ela exige, como critério mínimo, a reciprocidade penal: o fato tido como criminoso no país requerente deve também ser punível de forma semelhante pela legislação do Estado requerido.
O STF optou por não reconhecer os crimes de lesa-humanidade como imprescritíveis, mesmo com a prevalência desse entendimento na comunidade internacional contemporânea. À época, não havia a possibilidade de denúncia ao Tribunal Penal Internacional (TPI), criado apenas em 2002 com o Estatuto de Roma, que também não admite reservas por parte dos países signatários.
Outro fator apontado pelos ministros para negar a extradição foi a apresentação intempestiva de documentos por parte dos países solicitantes, em desacordo com os prazos estabelecidos pela legislação brasileira.
Com a corte se posicionando a favor da prescrição dos crimes, e Wagner foi posto em liberdade. A decisão majoritária, entretanto, ocorreu em pleno regime militar brasileiro, em um contexto histórico marcado pela centralização do poder no Executivo e por nomeações políticas de ministros do STF, o que compromete a percepção de autonomia do Judiciário. De 11 membros da Corte, 7 foram indicações de Geisel. Ao longo dos 21 anos de regime, de 1964 até 1985, o Supremo recebeu 31 ministros indicados por generais.

Estudiosos do Direito Internacional cogitam que o julgamento possa ter sido influenciado por alinhamentos ideológicos e institucionais entre o regime militar brasileiro e o passado militarista de Wagner, que serviu ao exército nazista. Sob essa ótica, fala-se na hipótese de protecionismo político-ideológico, ao passo de cooptação da Suprema Corte em decorrência dos interesses dos militares e alinhamentos institucionais entre poderes que deveriam ser independentes
“Sob a ótica contemporânea, se os crimes fossem analisados tendo a Constituição Federal de 1988 como um dos basilares, poderia ser alegada violação ao art 37 da CF/88. Ao analisar o caso concreto, ao menos dois desses princípios teriam sido violados, quer seja o da Imparcialidade e da Moralidade. Mas, no período do julgamento dos pedidos de extradição, a Constituição Federal vigente era a de 1949, elaborada, votada e promulgada no segundo governo de Getúlio Vargas, este que também comandou o Brasil sob o regime de ditadura em seu primeiro mandato”, avaliou Malena Caroline Welker, consultora internacional e jurista.
A reportagem conversou com o filho do advogado Flávio Augusto Marx, responsável pela defesa de Wagner no STF, Maurício Marx. Segundo ele, o pai não tinha interesse em quem estava defendendo, apenas no exercício do direito em si: “ele era de confiança de todas as partes, os clientes queriam a imparcialidade e o conhecimento do meu pai”
Questionado se o pai poderia ter ido à Procuradoria-Geral da República, ao Ministério da Justiça ou Itamaraty durante o processo de Wagner, ele diz acreditar que sim. “Na verdade, deve ser certeza que ele foi até lá pois eram partes integrantes do processo”, declarou.
Começam os pedidos de extradição
Junho de 1978, Brasília, DF — O Supremo Tribunal Federal (STF) recebeu em 1978 o mandado de prisão expedido pelo Tribunal da Comarca de Düsseldorf, na Alemanha, como base formal para o pedido de extradição do austríaco Gustav Franz Wagner, então apontado como ex-subcomandante do campo de extermínio de Sobibor. O documento, datado de 7 de junho daquele ano, foi entregue com tradução juramentada em português, como exige a legislação brasileira para fins de cooperação jurídica internacional.
Wagner, acusado de coautoria no assassinato em massa de judeus entre 1942 e 1943, havia sido identificado por autoridades alemãs como peça-chave nas operações de extermínio do campo, onde mais de 260 mil pessoas foram mortas. A ordem judicial alemã foi apresentada dias após sua prisão em São Paulo, atualizando o fundamento jurídico para a extradição e reiterando que ele deveria ser enviado à Alemanha para responder criminalmente por sua atuação durante a Segunda Guerra Mundial.

O processo de extradição também incluiu um mandado de prisão anterior, datado de 31 de março de 1967, emitido no contexto das investigações conduzidas em Dortmund. Este documento reforçava que Wagner era procurado pela justiça alemã há mais de uma década, possivelmente já condenado in absentia à época. O pedido alemão foi formalizado por meio da Nota Verbal, enviada pela Embaixada da República Federal da Alemanha em 1º de junho de 1978, um dia após a prisão de Wagner em território brasileiro. O Itamaraty respondeu no dia 7 de junho por meio do Ofício, indicando os documentos necessários à instrução do processo, conforme previsto na legislação nacional e no tratado bilateral vigente.
No dia 28 de junho de 1978, a Alemanha protocolou sua resposta definitiva, encaminhando uma segunda Nota Verbal com os mandados, fotografias autenticadas e garantias diplomáticas de praxe. Entre elas, destacavam-se o compromisso de reciprocidade, o respeito ao princípio da especialidade, a vedação de pena de morte e a promessa de não reextradição sem autorização brasileira.
Em 21 de agosto de 1978, Wagner foi apresentado formalmente ao Supremo Tribunal Federal pela Divisão de Polícia Marítima, Aérea e de Fronteiras da Polícia Federal. No mesmo dia, foi interrogado pelo Ministro-Relator no Hospital Psiquiátrico de Taguatinga, onde negou qualquer envolvimento direto em assassinatos, afirmando ter atuado apenas como carpinteiro no campo de Sobibor.
O interrogatório contou com a presença do Procurador-Geral da República, do advogado da Alemanha e do defensor de Wagner. Em declarações, o extraditando afirmou preferir ser entregue à Alemanha, caso a extradição fosse concedida, recusando explicitamente Israel como destino.

Testemunhos apontam atuação direta nos assassinatos
Junho de 1978, Brasília, DF — Relatório do Supremo Tribunal Federal (STF) sobre os pedidos de extradição de Gustav Franz Wagner apontou o acusado como um dos principais responsáveis pela execução sistemática de prisioneiros nos campos de extermínio nazistas de Hartheim e Sobibor. Segundo o documento, há provas consistentes de sua atuação como sargento das SS no período, quando dezenas de milhares de pessoas teriam sido assassinadas.
A Corte brasileira considerou que as provas testemunhais reunidas nos autos o descrevem como agente ativo da estrutura de extermínio, destacando sua conduta ao “brutalizar prisioneiros sem distinção de idade ou de sexo” e executá-los a tiros.
As acusações foram enquadradas, pela legislação nacional, como homicídio qualificado em larga escala. A análise incluiu os quatro pedidos de extradição apresentados por Alemanha, Israel, Áustria e Polônia — todos com interesse processual, mas até então sem realização de julgamento formal.
Os depoimentos mais contundentes vieram de sobreviventes judeus — Abraham Margulies, Jakob Biskubicz e Mosze Zahir —, que reconheceram Wagner como um dos agentes do campo de Sobibor. Descreveram o funcionamento das câmaras de gás disfarçadas como banhos, as execuções coletivas e as condições desumanas impostas aos prisioneiros. A consistência e a convergência desses relatos com a documentação oficial foram consideradas cruciais para a identificação do extraditando.
Stanislaw também testemunhou contra Wagner no STF: “Szmajzner, filho de Josef e também sobrevivente de Sobibor, prestou declaração sob juramento. Ele apresenta dados pessoais e afirma que conheceu o campo de concentração de Sobibor e “o seu comandante nazista” pessoalmente, pois lá foi prisioneiro desde 12/5/1942.”

Stanislaw narrou ao longo do processo “as condições desumanas e a morte de sua família”. Embora o trecho fornecido seja breve, o título sugere que ele confirma a figura de Wagner como um dos comandantes do campo.
A declaração de “Shlomo” é direta ao ponto sobre o conhecimento de Wagner em Sobibor. Sua identidade (filiação, data de nascimento) é verificável por outros registros; o que a defesa não contestou na época após as testemunhas deporem contra Wagner.
Linhas de defesa de Wagner
O documento de defesa foi apresentado em 1978 pelo advogado Flávio Augusto Marx ao então relator, ministro Cunha Peixoto. A defesa de Marx seguiu duas linhas entre 1978 e 1979:
- Desacreditar a identidade de Wagner — o que foi refutado com base nos relatos testemunhais das vítimas, fazendo a defesa abandonar a estratégia de defesa;
- Tomar como embasamento jurídico a prescrição dos crimes em território nacional;
A defesa de Gustav Franz Wagner alegou nulidades processuais e prescrição penal em manifestação protocolada junto ao STF no processo de extradição. A petição questiona a autenticidade das provas encaminhadas pelos países requerentes, em especial pela Alemanha Ocidental, argumentando que os autos não continham cópias autenticadas nem traduções oficiais. Segundo a defesa, a ausência de documentação válida comprometeria a legalidade do processo, tornando-o nulo.
Outro ponto central sustentado é a identidade do extraditando. Segundo o advogado, os documentos anteriores ao pedido formal de extradição mencionam apenas o nome “Gustav Wagner”, sem elementos qualificadores como data de nascimento, filiação ou impressões digitais. A tese sustenta a possibilidade de homonímia e erro de pessoa, dado o caráter comum do nome na Alemanha e Áustria. A argumentação recaiu sobre supostas contradições em depoimentos de testemunhas, divergências quanto à idade atribuída ao réu e ausência de dados completos nos mandados de prisão. Um dos documentos estrangeiros citava Wagner como chefe fotográfico em Hartheim, local que, segundo a defesa, ele jamais teria frequentado.
Além disso, a defesa afirma que os crimes atribuídos ao acusado já estariam prescritos segundo a legislação brasileira, linha de defesa que foi sustentada por Marx até o fim do julgamento. Com base no Código Penal vigente à época, o advogado argumenta que o prazo de 20 anos para a punição dos crimes teria expirado, já que os fatos remontam aos anos de 1942 e 1943, enquanto a prisão ocorreu em 1978.

Em tom mais enfático, o defensor menciona a possibilidade de Wagner estar sendo utilizado como “bode expiatório” pelo clamor internacional por justiça tardia aos crimes nazistas, e enfatiza que o acusado entrou legalmente no Brasil com nome próprio e se apresentou espontaneamente à polícia ao tomar conhecimento das acusações.
Outro pilar da argumentação da defesa aponta falhas formais nos pedidos de extradição. Marx afirmou que os documentos enviados por Polônia e Israel careciam de garantias de reciprocidade efetiva. Ele classificou promessas como “vagas” ou “ilusórias”, ressaltando que o Brasil não teria, em contrapartida, nenhum interesse prático na reciprocidade ofertada.
A legalidade dos pedidos também foi posta em xeque. Segundo os memoriais, não haveria correspondência entre os crimes descritos e a legislação penal brasileira vigente à época dos fatos. O caso israelense foi novamente citado: Wagner seria julgado com base em uma lei de 1950, aplicada retroativamente a crimes cometidos antes da fundação do Estado de Israel, contrariando o princípio da legalidade penal.
Enquanto a defesa investia na nulidade processual, o STF determinou diligências diplomáticas para suprir lacunas documentais. Em outubro de 1978, o ministro relator Cunha Peixoto oficiou o Ministério da Justiça requisitando, por via diplomática, a complementação dos autos referentes ao pedido da Alemanha Ocidental. O documento faltante, de acordo com parecer da Procuradoria-Geral da República, seria essencial para avaliar eventual interrupção do prazo prescricional no processo contra Wagner naquele país. O Ministério das Relações Exteriores (MRE) comunicou em ofício datado de 21 de setembro de 1978 o recebimento de documentos adicionais da República Federal da Alemanha.

Petição inicial contra Wagner no STF
Agosto de 1978, Brasília, DF — Em 21 de agosto de 1978, o extraditando foi formalmente apresentado ao STF para interrogatório. A sabatina foi realizada no Hospital de Custódia de Brasília. O relatório registra que Wagner foi formalmente interrogado no hospital, após tentativa de suicídio, e negou envolvimento nos crimes. Alegou nunca ter matado ninguém e afirmou ter trabalhado como carpinteiro no campo de Sobibor. As fotografias e os relatos anexados aos autos, contudo, indicam traços físicos coincidentes com as descrições fornecidas por sobreviventes, incluindo uma deformidade no ombro e a cor verde intensa dos olhos. Mesmo diante dessas evidências, o relator não antecipa juízo de valor.
Outubro de 1978, Brasília, DF — Em parecer emitido em 5 de outubro daquele ano, o Procurador-Geral da República, Henrique Fonseca de Araújo, recomendou o indeferimento dos pedidos de extradição apresentados por Áustria, Israel e Polônia, com base na prescrição penal segundo o ordenamento jurídico brasileiro. No caso da Áustria, o PGR considerou que os crimes ocorreram entre 1940 e 1942, ultrapassando o prazo de 20 anos previsto na legislação brasileira da época.

Quanto ao pedido de Israel, fundamentado na Lei de Punição de Nazistas de 1950, o parecer destacou sua inaplicabilidade no Brasil por ferir o princípio da legalidade penal. A Polônia, por sua vez, teve o pedido rejeitado pela ausência de documentação completa e também pela prescrição dos crimes.
“II. Áustria: Prescrição segundo a lei brasileira. III. Israel: Inaplicabilidade da lei penal. Prescrição segundo a lei brasileira. IV. Polônia: Carência de instrução adequada do pedido. Prescrição segundo a lei brasileira.” – Pontos do voto do relator especificando os motivos para negar os pedidos da Áustria (prescrição), de Israel (lei penal inaplicável e prescrição) e da Polônia (documentação deficiente e prescrição)”, narrou o parecer.
Em relação à Alemanha Ocidental, o PGR reconheceu a consistência do pedido, mas condicionou seu acolhimento à apresentação de prova complementar que demonstrasse a interrupção da prescrição conforme a legislação brasileira. A Procuradoria solicitou diligências para confirmar se Wagner havia sido incluído no mesmo processo penal de um co-réu julgado dentro do prazo legal.
Ao final, o parecer apontou que somente o pedido alemão reunia elementos suficientes para eventual deferimento, ressaltando a necessidade de confirmar a existência de conexão processual entre Wagner e outros condenados para afastar definitivamente a prescrição:
“V. República Federal da Alemanha: Competência. Desajuste do mandado de prisão […] Interrupção do prazo prescricional face à sentença proferida contra co-réu […]. Dúvida sobre documento decisivo para o desfecho do processo extradicional. Viabilidade do deferimento do pedido alemão após diligência.” – Trecho que condensa as peculiaridades do caso alemão: embora haja complexidades sobre a prescrição, o STF vislumbrava a possibilidade de deferir a extradição para a RFA, desde que esclarecido o ponto pendente (documento decisivo).”
Vale ressaltar que em 1979, o novo Procurador-Geral Firmino Ferreira da Paz adotou posição favorável à extradição para a Alemanha, desde que respeitadas as garantias penais previstas pela legislação brasileira – como o limite de 30 anos de prisão. O parecer foi emitido após a Alemanha cumprir as exigências formais.
Diante das críticas da defesa, tanto Israel quanto a Polônia reformularam seus compromissos. A Embaixada polonesa apresentou novos documentos ao Itamaraty, incluindo mandados de prisão e registros de inquéritos instaurados contra Wagner no pós-guerra.
Em nota, a Polônia garantiu reciprocidade plena nos termos da legislação brasileira. Israel, por sua vez, comprometeu-se a não aplicar pena de morte ao extraditando, designou um advogado brasileiro para atuar no processo junto ao STF e informou que nove sobreviventes do campo de Sobibor estavam dispostos a testemunhar contra Wagner. Ainda assim, os entraves legais permaneceram. Para o STF, as garantias diplomáticas não bastavam diante da retroatividade penal e da prescrição reconhecida pelo ordenamento jurídico brasileiro.
No dia 20 de outubro de 1978, o Ministro Relator, Cunha Peixoto, expediu ofício ao Ministério da Justiça solicitando mais uma complementação documental do pedido formulado pela Alemanha Ocidental. A diligência baseava-se em parecer da Procuradoria-Geral da República, que apontava a ausência de um documento fundamental para avaliar a prescrição penal conforme os critérios brasileiros. O STF condicionou a admissibilidade do pedido alemão à apresentação desse documento.

Em voto preliminar, Cunha Peixoto propôs o indeferimento das extradições solicitadas por Áustria, Polônia e Israel. O relator considerou prescritos os crimes imputados e apontou incompatibilidades entre as legislações penais estrangeiras e a brasileira. O único pedido que permaneceu em análise foi o da Alemanha Ocidental, condicionado à apresentação de documento que comprovasse a interrupção da prescrição.
- O relatório, ao reconhecer formalmente a identidade de Wagner e a verossimilhança das acusações, não ignorou a gravidade dos fatos. No entanto, sob a ótica jurídica vigente, o relator concluiu que o Brasil não poderia conceder a extradição sem violar seus próprios dispositivos legais.
Argumentação polonesa no processo
Segundo os documentos processuais, a solicitação polonesa foi fundamentada no artigo VI da Convenção da ONU de 1948 para a Prevenção e Repressão do Crime de Genocídio, ratificada tanto por Brasil quanto pela própria Polônia. Segundo o tratado, as pessoas acusadas de genocídio devem ser julgadas no país onde os crimes foram praticados. Para além disso, o pedido reafirmou a natureza comum e não política dos delitos, enquadrando-os como crimes contra a humanidade e reiterando que as ações de Wagner integraram a operação nazista de extermínio “Einsatz Reinhard”.
Na nota formal remetida ao Itamaraty, o Ministério dos Negócios Estrangeiros polonês enfatizou a legitimidade da jurisdição do país e apresentou documentação detalhada:
- mandado de prisão de 1948
- Instrução reaberta em 1965
- Transcrições de depoimentos
- Peças legais e cópia das leis de exceção aplicáveis aos crimes de guerra nazistas.
A Polônia também ofereceu garantia de reciprocidade diplomática, conforme exigido pela legislação brasileira.
A peça acusatória da Polônia relata episódios de extrema crueldade: assassinatos cometidos com arma de fogo, facas e bastões; represálias coletivas com centenas de mortos; uso de prisioneiros como alvos de tiro ao alvo; e espancamentos até a morte. Um dos trechos mais contundentes relata que Wagner “cumpria suas funções com grande zelo e com evidente gosto”.
A Polônia encaminhou ao Brasil dois volumes de provas, incluindo 18 documentos e depoimentos de testemunhas oculares, traduzidos e autenticados. Vítimas sobreviventes identificaram Wagner por nome, função e aparência física, apontando-o como o “carrasco de Sobibor”. Os relatos confirmam sua atuação direta em atos de extermínio, reforçando a narrativa de genocídio. O conjunto probatório foi apresentado para atender à exigência da legislação brasileira quanto à dupla tipicidade e à demonstração de autoria (DL 941/69, art. 91, II).
A questão da prescrição penal foi abordada de maneira minuciosa no pedido. Embora os crimes tenham ocorrido entre 1942 e 1943, a Polônia alegou que o prazo de prescrição foi interrompido duas vezes: com o mandado de prisão de 1948 e com a reabertura da investigação em 1965. Além disso, foi anexada a Lei polonesa de 1964 que anulou a prescrição para crimes nazistas, mesmo quando o acusado residisse no exterior ou não tivesse sido localizado.
A argumentação polonesa apelou tanto ao direito positivo quanto a um princípio de justiça material compartilhado pelas nações signatárias da Convenção do Genocídio.
O núcleo jurídico do pedido, assinado pelo Procurador-Geral Lucjan Czubiński, foi dirigido diretamente ao Supremo Tribunal Federal e constituiu a base da análise judicial que se seguiu.

STF negou extradição de Gustav Wagner sob alegação de prescrição penal
Junho de 1979, Brasília, DF — Por maioria de votos, o STF indeferiu em 20 de junho de 1979 o pedido de extradição de Gustav Franz Wagner, oficial da SS nazista e ex-subcomandante do campo de extermínio de Sobibor, apontando prescrição penal conforme a legislação brasileira. A decisão encerrou formalmente as pretensões de Alemanha Ocidental, Israel, Áustria e Polônia, que haviam solicitado a entrega do réu por crimes cometidos durante a Segunda Guerra Mundial. À época, o Tribunal entendeu que os fatos estavam abrangidos pelo prazo prescricional ordinário de 20 anos.
- A fundamentação jurídica do acórdão da Lei de Extradição brasileira, dispositivo que impede a entrega de estrangeiros quando extinta a punibilidade pela prescrição.
- Na prática, o STF equiparou os atos atribuídos a Wagner – assassinatos sistemáticos de civis – a homicídios comuns, passíveis de prescrição no ordenamento pátrio. Ficou registrado que a contagem do prazo teve início em 14 de outubro de 1943, data da revolta em Sobibor, esgotando-se em 1963.
- Como o primeiro mandado de prisão internacional só foi emitido em 1967, concluiu-se que a punibilidade já se encontrava extinta no Brasil.
A decisão provocou reações diplomáticas. Em nota verbal encaminhada ao Itamaraty, o governo da Alemanha Ocidental solicitou providências para garantir a permanência de Wagner sob jurisdição brasileira enquanto apresentava embargos de declaração contra o julgamento. A República Federal da Alemanha alegou erro material na análise documental do caso, afirmando que dispositivos do direito alemão haviam sido interpretados de forma incorreta, o que teria impactado no reconhecimento da prescrição. O pedido, encaminhado ao plenário do STF, foi rejeitado em sessão de agosto de 1979.

Com a rejeição dos embargos e a certificação do trânsito em julgado, o STF determinou o arquivamento definitivo do processo de extradição. O Ministério da Justiça, então comandado por Petrônio Portella, comunicou o resultado às autoridades migratórias e estrangeiras. Gustav Wagner foi posto em liberdade nos meses seguintes de 79 e permaneceu em território brasileiro até sua morte, em 1980, sem jamais ser julgado pelos crimes atribuídos.
Segundo telegramas obtidos com exclusividade pelo VTVNews, comunicados trocados entre Tel-Aviv e o Itamaraty, citam que a embaixada brasileira em Israel foi pichada com suásticas, e o embaixador recebeu ameaças. Wiesenthal acusou o Brasil de se tornar “um santuário de nazistas”. No Congresso Nacional, o deputado Emanuel Waisman (MDB) denunciou a recorrência da presença de genocidas vivendo impunemente no país.
Esse foi o início das críticas internacionais sobre o caso Franz Wagner no Brasil, que perdurou até o fim do regime militar.
