A popularização das ferramentas de Inteligência Artificial reacendeu o debate sobre o uso indevido de material autoral na internet, especialmente no setor artístico dos dubladores, que, cada vez mais, escutam suas vozes sendo recriadas por meio de ferramentas online.
Alguns optaram pelo caminho judicial em defesa do próprio direito autoral: a voz. Outros buscam medidas legislativas e aguardam uma atuação parlamentar daqueles que, de fato, podem regular a lei sobre o tema: o Congresso Nacional.
O problema retoma uma questão antiga: a dificuldade de rastrear a origem de conteúdos replicados nos meios digitais. Desde o fim dos anos 1990, com o avanço da internet e o fácil acesso a músicas, fotos, livros e vídeos, tornou-se mais complexo fiscalizar o uso correto de material protegido por direitos autorais.
Em 2018, a Câmara de Comércio dos Estados Unidos estimou que a pirataria de vídeos online gerava um prejuízo de cerca de US$ 30 bilhões por ano à economia americana, além da perda de milhares de empregos na indústria cultural. À época, isso impulsionou o fortalecimento de legislações sobre patentes e marcas, bem como a adesão ao Tratado de Direitos Autorais da Organização Mundial da Propriedade Intelectual (OMPI).
Ainda nos Estados Unidos, especialistas afirmam que os resultados gerados pela I.A. configuram uma “complexa colagem artística” e, como se baseia inteiramente em obras protegidas por direitos autorais, seria necessária autorização prévia para seu uso. Seria como se a I.A. fosse um cineasta querendo fazer um filme baseado em um livro protegido por direitos autorais. Assim como o diretor precisaria de autorização para adaptar a obra, a I.A. necessita da autorização dos artistas para treinar seus algoritmos.
Área artística comprometida?
“O que acontece é que na área artística isso é meio complicado. Eu acredito que sejam lançadas ferramentas para um trabalho híbrido, mas não que vá substituir [os artistas]”, disse o Manolo Rey, ator e dublador que emprestou a voz para o Will Smith no Brasil, e ao Homem-Aranha, de Tobey Maguire nos cinemas.
O dublador avalia que o trabalho de criação artística humana não está ameaçado pela I.A., uma vez que ela não cria, e sim gera a partir de prompts baseadas em um banco de dados online. E para eles existirem por sua vez, a I.A. não seria capaz de se “auto alimentar” ou de revolucionar um paradigma.
“A minha avaliação é que tá muito alvoroço. As pessoas, algumas estão com medo, outras estão fazendo festa. Mas eu acredito que vai causar desemprego daquele trabalho que tem repetição, aquele trabalho que tem um esforço repetitivo, quase de robô de fábrica.”, finalizou Manolo.
Fábio Azevedo, o dublador do Doutor Estranho e atual presidente da Associação Brasileira de Dubladores, a Dublar soltou a voz na entrevista à VTV, e compartilhou uma visão semelhante à de Manolo: “Ela [I.A.] é uma compiladora. Ela cria sínteses, ela cria algoritmos, estatísticas e probabilidade. Ela processa aqueles dados para te dar a resposta que seja mais condizente com o palpite ou com a solicitação que você fez”
Fábio distinguiu o esforço de uma máquina comparado com o esforço criativo humano: “Ele vai trabalhar ali no mínimo esforço, porque ele é uma máquina e não tem um motivo para ele ultrapassar o limite dele.”
Riscos da I.A. para os dubladores
Fábio Azevedo comenta que os riscos da ascensão das I.A. na dublagem são compostos. “O risco não sou eu, Fábio, não dublar mais, mas sim a total desconsideração pela nossa cultura. Nenhum falante brasileiro fala daquela forma”, referindo-se ao filme O Silêncio de Marcos Tremmer, lançado com dublagem totalmente artificializada pela Amazon Prime. O filme rendeu críticas do setor artístico e do público.
“Era assustador porque ninguém, nenhum falante de português brasileiro, fala daquela forma. Então, ofertar para a população um produto com aquela qualidade absurdamente deficitária é um absurdo. É um desrespeito com a nossa cultura”, finalizou o dublador.
Na mesma linha de crítica, Manolo Rey comentou sobre a relação da dublagem e da cultura brasileira sendo empregada nos trabalhos: “A I.A. não percebe essas características culturais e sociais. O olho tem emoção. O olhar diz tudo sobre seu sentimento. Um anime por exemplo, é todo mundo gritando, porque é da cultura japonesa dos animes essa sonoridade. Nem sempre isso se encaixa na realidade brasileira, e nós, atores percebemos isso, e adaptamos.”
O caminho da judicialização
O que fazer se a minha voz estiver sendo usada indevidamente? Renato Maringoni Lopes, advogado e especialista em direito comercial pela Fletcher School of Law and Diplomacy, explica sobre o arcabouço legal que ampara esses trabalhos artísticos: “A propriedade intelectual trata da proteção de todas as produções do espírito humano, e é dividida na proteção de direitos autorais e no direito de propriedade industrial.”
A lei brasileira oferece algumas proteções para quem tem a voz como ferramenta de trabalho, mesmo que ainda não existam regras específicas sobre inteligência artificial. Segundo o advogado, a voz pode ser protegida de duas formas: como um direito autoral e como um direito de personalidade.
Direitos autorais garantem a proteção de qualquer criação do espírito humano — como livros, músicas, filmes e até programas de computador — mesmo que não tenham sido criados com fins comerciais. Ou seja, mesmo que uma obra seja divulgada de graça, ninguém pode copiá-la ou se declarar autor sem autorização.
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A propriedade intelectual é um guarda-chuva mais amplo: ela cobre tanto os direitos autorais quanto o chamado direito de propriedade industrial — como invenções e marcas. Já a voz de um profissional, quando usada de forma criativa e expressiva, como num trabalho de dublagem, entra na categoria de direito autoral.
E, mesmo fora de uma obra específica, ela também é protegida pelo Código Civil como parte da identidade de uma pessoa, ou seja, como um direito de personalidade. Isso significa que ninguém pode usar sua voz sem autorização, mesmo que ela tenha sido gerada por inteligência artificial.
O dublador Manolo Rey compartilhou que recentemente tomou medidas legais para coibir o uso da sua voz modificada por I.A. Segundo ele, um internauta utilizou sua voz a partir de uma ferramenta online. E apenas com um comando, a voz de Manolo estava em outro personagem: “Você pegou a minha voz, processou numa máquina um aplicativo e transformou em outra coisa. Ela não está imitando. Eu falei ‘isso é crime’, e pedi a retirada da minha voz de um site assim.”
“A voz entraria como um direito autoral. A lei protege a expressão do “espírito” por qualquer forma”, disse o advogado.
As penas são variadas, e dependem do grau de danos. As ações cíveis estão na própria lei de direitos autorais (lei 9.610/1998) e podem variar, como:
- Indenização por danos morais;
- Indenização por danos materiais;
- Apreensão dos exemplares reproduzidos indevidamente ou suspensão da divulgação indevida da obra;
- Destruição ou apreensão das máquinas, equipamentos, insumos que foram utilizados;
Já as penas criminais estão previstas no código penal, e podem ser:
- Detenção de 3 meses a 1 ano ou multa;
- Reclusão de 2 a 4 anos e multa (se a violação tiver intuito de lucro direto ou indireto ou se a violação consistir no oferecimento ao público sistema que permita o usuário acessar a obra sem autorização do autor);
O caminho da legislação
Em contrapartida ao caminho judicial, Fábio comenta que nem todo os dubladores possuem recursos financeiros suficientes para travar a briga na justiça. Além disso, ele observa que nem todo processo é cabível.
“O problema da judicialização é que nem sempre os responsáveis são identificados, e outras vezes são apenas adolescentes de 15 anos tirando sarro do colega no Discord [rede social]”, comentou. Segundo o dublador, em São Paulo e no Rio de Janeiro, mais de 2.600 pessoas estão empregadas graças a indústria da dublagem.
“Eu não posso ficar parado, vendo nossa realidade ser canibalizada. Em São Paulo e Rio de Janeiro devem ter juntas cerca de 1.200 dubladores, fora os profissionais dos estúdios. O impacto econômico na vida dessas pessoas pode ser terrível, e a curto prazo.”, seguiu.
Com esse vislumbre, Fábio diz que o caminho legislativo é a saída prática, e que tem procurado reunir apoio de Deputados Federais e Senadores para articular um arcabouço legal de proteção intelectual contra essas ferramentas em ascensão.
A Dublagem Viva recentemente lançou um manifesto de urgência para a tramitação de projetos de lei que buscam regulamentar a Inteligência Artificial e o streaming no Brasil. Segundo o texto publicado, toda a cadeia produtiva da dublagem é afetada, e não somente o trabalho dos dubladores.
“Eles querem defender ela [I.A.] para fazer tudo em nome do Big Data, que está gigantesca. É lutar contra o dinheiro infinito. Entretanto, nós estamos tentando lutar e a gente não vai desistir. Então a gente está tentando, via projeto de lei, criar um regramento mínimo para que a inteligência artificial possa sim, existir. Possa sim, ser utilizada, mas com responsabilidade e de forma moral também”, finalizou o dublador.