O Supremo Tribunal Federal (STF), aquele que tanto se diz guardião da Constituição, decidiu inovar: agora também é redator. Criou, de dentro de gabinetes bem trancados, um novo marco regulatório para a internet no Brasil. E como se não bastasse, fez isso invocando o nome sagrado da democracia — aquela mesma, que dizem que exige transparência, debate público e, o mais importante, a separação dos Poderes. A sociedade só leu depois de pronta, aprovada por onze votos internos, sem relator designado, sem contraditório aberto, sem sequer a encenação de um debate verdadeiro. E então veio o choro emocionado do ministro Toffoli, o sempre disponível anulador-geral, a nos anunciar, com voz trêmula e toga inflada, o nascimento do Marco Supremo da Internet.
Não foi só um julgamento, foi um rearranjo institucional. A Corte Constitucional transformou-se, sem rubor, em uma quase “assembleia constituinte paralela”, legislando onde não é chamada, avançando sobre o que não lhe compete, reformando uma lei aprovada por representantes eleitos — o Marco Civil da Internet de 2014 — com base em suposta “omissão legislativa”, que, ora, nada mais é do que o direito legítimo do Parlamento de não legislar. A omissão, quando vinda do Congresso, não é um vácuo a ser preenchido por juízes; é parte do jogo democrático. Mas será que o STF quer mesmo jogar esse jogo ou prefere editá-lo?
Quer determinar não só o que é válido, mas o que deve ser. E para isso, legisla por tese — um eufemismo bonito para regra judicial feita sob medida. Eis o espírito de colegiado que virou comissão temática, só que sem ata, sem vídeo, sem taquígrafo. Apenas o que Barroso diz que foi dito.
Ao derrubar o artigo 19, o STF não protege o cidadão contra o poder das Big Techs — faz justamente o contrário. Se as plataformas forem responsabilizadas diretamente por qualquer publicação, a consequência não muito óbvia é censura preventiva. Quem pagaria para arriscar? As empresas farão o que sabem fazer melhor, proteger seus lucros. E, para isso, eliminarão qualquer conteúdo minimamente controverso. Não importa se você escreveu que “odeia o presidente da Câmara” ou que a pizza da esquina é ruim — na dúvida, some tudo.
A decisão do STF foi: plataformas digitais agora têm a obrigação de remover, sem ordem judicial, conteúdos considerados “gravemente ilícitos” — terrorismo, apologia ao suicídio, pornografia infantil, e por aí vai. O que, num primeiro olhar, pode até parecer razoável, se desmancha logo em seguida: o STF não só relativizou o artigo 19 do Marco Civil (que exigia ordem judicial para remoção de conteúdo), como o reinventou. Fez da exceção a nova regra e deu às plataformas a função de juízes — só que sem toga e sem controle, decidindo o que pode ou não circular, sob pena de sanção. Institucionalizou a censura privada, aquela que ninguém vê, mas que molda silenciosamente o que lemos, dizemos e até pensamos.
O mais perigoso foi a normalização do processo de legislar sem lei, sem Legislativo, sem ritual. O precedente está plantado. A nova prática: fechar as portas e deliberar em silêncio. Para o nosso bem, claro. Porque, como já disse a ministra Cármen Lúcia, somos todos — os 213 milhões de nós — pequenos tiranos em potencial. E é preciso que alguém nos salve de nós mesmos.
O problema nunca foi o mérito da decisão — o combate a crimes online é necessário, urgente, legítimo. O problema é o método. A forma como se subverte o processo democrático em nome de um bem maior, esse que só os iluminados reconhecem. Como se o Estado de Direito pudesse ser um atalho para si mesmo. Como se a República se sustentasse sobre exceções criadas por quem deveria zelar pela regra.
A internet brasileira tem, agora, dois marcos. Um veio do Congresso, com debate, escuta, votos, democracia. O outro, do Supremo, com silêncio, liturgia e lágrimas. Um é civil. O outro, supremo. E a diferença entre eles não é apenas de nome: é de regime.