Imagem: Reprodução – Carolina Maria de Jesus, Bianca Santana, Sueli Carneiro, Djamila Ribeiro, Conceição Evaristo e Lélia Gonzalez
No Brasil, as mulheres negras têm sido protagonistas em muitas áreas da sociedade, desafiando estigmas e conquistando espaços, mesmo diante de séculos de invisibilidade e resistência. Na literatura, não é diferente.
Escritoras afro-brasileiras desempenham um papel fundamental na construção de uma narrativa que resgata a história de resistência, ressignificação e identidade das mulheres negras, muitas vezes esquecida ou distorcida nos livros de história tradicionais.
Autoras como Conceição Evaristo, Carolina Maria de Jesus, Cidinha da Silva e tantas outras têm utilizado a literatura como uma poderosa ferramenta de resistência, enfrentando o racismo estrutural e as barreiras impostas por um mercado editorial majoritariamente branco e masculino. Por meio de suas palavras, elas não apenas retratam suas realidades, mas também criam novos espaços de visibilidade e empoderamento para a mulher negra.
Essas escritoras, ao longo de suas trajetórias, não apenas documentaram suas realidades, mas também ofereceram uma rica reflexão sobre a identidade afro-brasileira, a força das mulheres negras e a luta por um lugar no mundo. A literatura se torna, assim, uma ferramenta para a construção de uma narrativa própria, que permite às novas gerações de mulheres negras se verem representadas e empoderadas.
Uma delas é a escritora e jornalista de 58 anos, Maria Alice da Cruz, moradora de Campinas e autora do livro Vitalina Cherubim: neta de escravos em conversas com café quente, publicado em 2019. Maria também é coautora de outras obras, como Causos da Vida: da fazenda aos livros e Faço parte desta história, que reúne crônicas sobre a trajetória de funcionários da Unicamp.
Para Maria Alice, os maiores obstáculos e desafios que enfrenta como escritora negra no Brasil são de ordem pessoal, porque a escrita não consegue concorrer com os burburinhos da vida cotidiana e a falta de tempo.
“As demandas diárias de uma mulher brasileira estão entre os principais desafios da escritora negra. Mas, com relação ao mercado, ouço depoimentos de amigas escritoras sobre desafios como a rejeição a temáticas negras, principalmente em relação à nossa cultura e ancestralidade.”
A escritora e jornalista conta ainda que não podemos fechar os olhos para a realidade, pois, para ela, é nítida a invisibilização de autoras negras.
“Quando Sueli Carneiro, Lélia Gonzalez, Djamila Ribeiro e Conceição Evaristo, começam a ter mais notoriedade em páginas específicas, o reconhecimento vai se tornando inevitável. O ingresso de pesquisadores negros e pesquisadoras negras na academia também começa a descortinar essas histórias”, explica.
As autoras citadas também são inspirações para Alice, que sempre leu de tudo, mas que na escola não foi incentivada a ler autores negros. A jornalista relata ainda que leu a obra de Carolina Maria de Jesus, O quarto de despejo, que se tornou um clássico e leitura obrigatória em vestibulares recentemente, apenas na adolescência. A partir daí, ela passou a admirar a autora pela insistência em escrever, apesar das pessoas duvidarem dela.
A importância de mais representatividade negra na literatura brasileira
Ser uma escritora negra no Brasil não é uma tarefa simples. O caminho para o reconhecimento literário é repleto de obstáculos, desde a escassez de editais que valorizem as obras até a dificuldade de encontrar espaços para essas vozes nas grandes editoras e prêmios literários.
Ainda assim, a literatura afro-brasileira tem ganhado força, e as autoras negras são fundamentais nesse processo. Seus livros não são apenas uma resistência cultural, mas também uma forma de reescrever a história.
Conceição Evaristo, por exemplo, resgata as experiências das mulheres negras, explorando com profundidade suas lutas, seus desejos e seus desafios, com o que ela chama de escrevivências — a escrita que nasce do cotidiano, das lembranças, da experiência de vida.
Em 2024, Maria Alice esteve na Flip (Festa Literária Internacional de Paraty) e fez um importante trabalho junto com as escritoras Jeniffer Effe’s e Vivi de Paula também de Campinas, sobre as lacunas entre as primeiras publicações de escritoras negras brasileiras, refletindo sobre a invisibilidade e a morosidade para que a produção intelectual e literária dessas mulheres fosse vista ou reconhecida.
“Nem tudo o que é visto é reconhecido, não é? Até somos vistas, mas o reconhecimento tem um processo bem demorado”, contou a escritora e jornalista.
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“A importância da escrevivência de Conceição Evaristo, que é a escrita que surge a partir da experiência de vida da autora e do seu povo. A história oral também tem um trabalho importante em dar voz aos verdadeiros donos das histórias”, acrescenta Alice.
Maria Alice lembra e imagina como deve ter sido a trajetória da primeira mulher negra a ser publicada no Brasil, Maria Firmina, autora do livro Úrsula, publicado em 1859, numa época em que os anúncios dos primeiros romances eram avaliados para saber se as mulheres não influenciariam mal as mulheres da época, segundo uma tese da Unicamp.
“Os anúncios diziam que os livros eram moralizantes porque os textos sempre puniam a mulher que se envolvesse em traição. Se esse era o contexto para mulheres brancas, imaginem como seria o cenário para mulheres recém-libertas após o período de escravidão”, observa Maria.
Ela conclui que, na atualidade, precisamos, além de publicar e inspirar, ir às escolas e incentivar nossos jovens e crianças.
As novas gerações de mulheres negras
As novas gerações de mulheres negras, inspiradas por essas escritoras, têm encontrado nas páginas dos livros um espelho de suas próprias experiências, de suas lutas e de suas vitórias. A literatura negra, portanto, não é apenas uma forma de expressão artística, mas uma resistência política e cultural.
Geovanna Braga, de 16 anos, sonha em publicar o próprio livro um dia. Inclusive, já tem a obra escrita, cujo título é Do meu Coração para a periferia. A adolescente conta que, para ela, os livros de autoras negras a ajudam a reconhecer seu espaço de pertencimento.
“Não é como ler sobre uma princesa branca, cujas diferenças comigo são enormes. Isso faz com que nunca me identifique com os personagens”, diz Geovanna.
Ela também cita Conceição Evaristo como uma das autoras que costuma ler com frequência. “As obras dela são acolhedoras, como, por exemplo, o livro Os olhos d’água, que conta a realidade de muitas pessoas da periferia do Brasil.”
As escritoras afro-brasileiras são, em muitos aspectos, as grandes narradoras da história que precisamos ouvir, entender e respeitar. Por meio de suas palavras, não só preservam a memória, mas também criam novas possibilidades para o futuro.
“Na minha vivência, meu pensamento mudou completamente após ler e ter contato com obras dessas autoras (Conceição Evaristo e Chimamanda, citados por ela). Sem falar na sensação de ser uma jovem negra após ler esses livros, pois comecei a me amar mais e passei a entender minha história.”
Ao ler essas autoras, não estamos apenas consumindo literatura; estamos, de fato, participando de um movimento que busca, a cada página, dar visibilidade, poder e voz às mulheres negras. É preciso que a literatura de autoria negra ganhe o reconhecimento que merece e que as vozes dessas mulheres continuem a ecoar
“Nós, mulheres negras, precisamos de atenção em vários campos ainda. Imagine na literatura, imagine numa atividade altamente intelectual como a literatura… De Maria Firmina a Carolina Maria de Jesus, demorou um século; de Carolina para Lélia Gonzales, também; de Lélia a Sueli Carneiro, mais alguns anos. Mas as lacunas vão diminuindo ao longo da linha do tempo das escritoras negras. Entre mim, Alessandra Ribeiro, Tânia Alves, Jeniffer Effe’s e Vivi de Paula, todas de Campinas, não tem lacuna”, acrescenta Maria Alice da Cruz.