A Teoria do Elo, também conhecida como Teoria do Ciclo da Violência, evidencia a possível correlação direta entre maus-tratos a animais e a violência praticada contra grupos vulneráveis no ambiente doméstico. O conceito aponta que agressões contra animais de estimação não ocorrem de forma isolada, mas podem integrar uma dinâmica familiar marcada por controle, medo e submissão.
Segundo a teoria, o abuso contra os animais funciona como um indicativo de que há outras formas de violência acontecendo naquele núcleo social. Mulheres, crianças e idosos figuram entre os principais grupos afetados. Segundo especialistas ouvidos pela reportagem, em muitos casos o agressor utiliza o animal como instrumento de coação ou intimidação, ampliando o alcance do comportamento violento. A abordagem da Teoria do Elo vem ganhando relevância entre profissionais da saúde, segurança pública e justiça, por oferecer uma perspectiva integrada da violência doméstica.
“O agressor é aquele cara que é intolerante, tá vivendo uma situação de estresse, não aceita não como resposta, e não dialoga. Uma pessoa que não trata bem a outra nesse sentido, ela não vai, muito menos, tratar bem um animal.”, disse Sandro Montanari, delegado da Delegacia da Seccional de Bragança Paulista.
Para exemplificar essa correlação, a VTV realizou um levantamento com base nos dados disponibilizados pela Secretaria de Segurança Pública de SP, sobre casos de violência doméstica e maus-tratos animal nas cidades de Campinas, Atibaia e Bragança Paulista. O período observado foi de janeiro até junho de 2023 e 2024.


Maus-tratos diferente da negligência
O elo entre maus-tratos animal e a violência doméstica foi apontada pela pesquisadora Maria José Sales Padilha na década de 2010, e levantou diversos estudos posteriores. Um desses estudos, focado no bem-estar dos pets, foi da Janaina Hammerschmidt, da empresa Peritus Vet Consultoria Veterinária. Em 2012 ela apresentou uma dissertação de pós-graduação em ciências veterinárias sobre o desenvolvimento e aplicação de perícia em bem-estar animal.
“Então, nós estávamos lá naquela época tão atrasados, nem se falava em teoria do elo, por exemplo. Naquela época, não se falava praticamente em maus tratos no Brasil, eram mais situações de morte violenta.”, disse a especialista. Apesar do alerta para maus-tratos, Janaina relembra que durante a pesquisa os maiores casos eram de negligência.
“A negligência é justamente essa falta de cuidado, você falhar em prover as necessidades básicas dos animais como alimentação, abrigo, conforto, atendimento de saúde, necessidades comportamentais. Então quando a gente falha em oferecer tudo que um animal precisa para viver bem, a gente pode enquadrar numa situação de negligência desde que seja por falta de conhecimento“, finalizou
Janaína explicou que a negligência é diferente da ação dolosa, isto é, intencional. A negligência refere-se a falta de conhecimentos sobre cuidados básicos para com o animal doméstico. Para este segundo, a especialista avalia tratar-se de questão estrutural e cultural da sociedade.
“Então, com certeza a gente combate a negligência, a gente tem que permear a orientação, a educação, o aprendizado também pela punição, né? E quando a gente fala de adultos e também nunca esquecer das ações educativas com as crianças pra gente levar cada vez mais essa informação. “
A especialista disse ainda que a Teoria do Elo não possui estudos que relacione a negligência a violência doméstica, apenas a ação dolosa: “quando falamos da Teoria do Elo, saímos da diferenciação da negligência, para o campo da intenção, a ação dolosa, e daí fazemos essa relação da violência.”
Aspectos psicológicos intencionais
Segundo a Luciana Vargas Sant’Ana, sócia da Janaina, a violência praticada contra os pets nesses contextos, opera como mecanismo de dominação psicológica, com efeitos que ultrapassam o dano físico ao animal. Isto é, a violência contra o animal pode surgir inclusive como forma de atingir a tutora, uma vez que ela possui um vínculo emocional com ele.
Estudos preliminares conduzidos em 2010 sobre o tema mostram que mais da metade das mulheres vítimas de violência doméstica relataram que de fato seus animais também foram agredidos pelos companheiros, frequentemente diante delas.
Continua após a publicidade
“O ato intencional é violento em si. Deixar o animal sem cuidado, sem alimento, de propósito, para que ele sofra e que a vítima, a tutora, também sofra. Então veja a intencionalidade de causar dano”, disse Luciana.
Ciclo da violência: da infância à idade adulta
A Teoria do Elo também observa que comportamentos agressivos se originam muitas vezes ainda na infância, chamado de ‘Ciclo de Violência’. Crianças expostas à violência – seja como vítimas diretas ou testemunhas – tendem a reproduzir padrões abusivos e de agressividade, inicialmente contra animais. Com o tempo, esse comportamento pode se ampliar para agressões a pessoas, geralmente aquelas em condição de vulnerabilidade. Para mitigar isso, Luciana diz que a teoria pressupõe um rompimento com o paradigma da violência, sendo necessária a conscientização.
A psicóloga e psicanalista Mônica Maria Rosa, explicou como a violência, mesmo nas primeiras infâncias, se manifesta: “o animal, ele é menor do que a criança. A criança não vai conseguir bater num adulto, mas com o animalzinho ela consegue, porque é mais indefeso. Então gera uma violência contra os animais logo na infância”.
Já para o delegado Sandro da Seccional de Bragança, a questão da violência e agressividade possui também raízes culturais: “Até um pouco mais de 100 anos atrás, a cultura local era de tratar o escravo como uma coisa, um produto de consumo, e não uma vida. Eu trago isso para a causa animal agora. Os indivíduos que cometem esses delitos tendem a tratar o animal como uma coisa também, e não como uma vida.”
Sandro convergiu na fala das especialistas e relatou: “Meu papel [como delegado] é conscientizar a população, e inclusive as pessoas que tem essa agressividade, como cultura, seja por uma tendência familiar ou alguma faculdade do passado, que tenha normalizado isso”.
O que mostram os dados na região?
A VTV levantou dados para exemplificar a Teoria do Elo com base nas ocorrências na região de Campinas e Bragança Paulista. Conforme já revelado pela VTV, a cidade de Campinas lidera o ranking de maus-tratos contra animais domésticos e silvestres. Entre janeiro de 2023 e dezembro de 2024, Campinas registrou 165 casos de maus-tratos contra animais, sendo mais de 49% das ocorrências dentro das casas.
A redação teve acesso a dados de violência doméstica e maus-tratos animal nas cidades de Campinas, Bragança Paulista e Atibaia, dentro do período de janeiro a junho de 2023 e 2024, disponibilizados pela Secretaria de Segurança Pública do Estado de SP. Segundo os dados, de janeiro a junho dos respectivos anos, as três cidades somadas registraram 12.862 de violência doméstica, sendo Campinas responsável pela maior parte das ocorrências. No que diz respeito aos maus-tratos animal, as três cidades somadas registraram 144 ocorrências.
Individualmente, os dados revelam qual das três cidades possuem maiores incidências de ocorrências:
2023 | Cidade | Violência Doméstica | Maus-tratos animal | 2024 | Cidade | Violência Doméstica | Maus-tratos animal |
Atibaia | 676 | 15 | Atibaia | 613 | 10 | ||
Bragança Pta. | 866 | 7 | Bragança Pta. | 825 | 3 | ||
Campinas | 4.686 | 40 | Campinas | 5.389 | 66 |
Os dados revelam que, dentro do mesmo período de 2023 e 2024, as cidades de Atibaia e Bragança Paulista tiveram queda nas ocorrências de violência doméstica e de maus-tratos animal. Por outro lado, Campinas se consolidou como a única em que ambos tiveram um aumento percentual de um ano para outro: violência doméstica (15%) e maus-tratos animal (65%)

É importante ressaltar que essa é uma média geral. A taxa de ocorrência pode variar significativamente entre as cidades individuais. Além disso, os dados de violência doméstica muitas vezes são subnotificados, o que significa que o número real de casos pode ser ainda maior.