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O Supremo parece querer legislar — e isso não é sua função

Não é de hoje que o Supremo Tribunal Federal parece confundir toga com caneta legislativa. 
Gilmar Mendes suspende processos aguardando decisão do STF (foto: STF / YouTube)

Ao flertar com a inconstitucionalidade do artigo 19 do Marco Civil da Internet, a Corte avança mais um passo na sua campanha silenciosa de reforma institucional sem mandato. O argumento? Que não existe lei suficiente para responsabilizar as redes sociais pelos conteúdos publicados por terceiros. A realidade? A lei existe. Desde 2014. Foi debatida, construída com participação da sociedade civil, aprovada no Congresso. E está em vigor. O nome dela: Marco Civil da Internet.

Dizer que há um “vácuo legislativo” é fingir ignorância jurídica ou forjar pretexto. O que há é uma Corte que parece querer ocupar o espaço do Legislativo, sob o pretexto de uma pretensa “omissão”. Mas mesmo que o Congresso não atualize a norma, essa inação é, em si, uma decisão. Democracia representativa também é isso: aceitar que o impasse faz parte do jogo, que nem toda demanda se converte em norma — e que nem tudo o que parece urgente justifica romper os freios e contrapesos da República.


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Mas não é só isso. Ao derrubar o artigo 19, o STF não protege o cidadão contra o poder das Big Techs — faz justamente o contrário. Se as plataformas forem responsabilizadas diretamente por qualquer publicação, a consequência não muito óbvia é censura preventiva. Quem pagaria para arriscar? As empresas farão o que sabem fazer melhor, proteger seus lucros. E, para isso, eliminarão qualquer conteúdo minimamente controverso. Não importa se você escreveu que “odeia o presidente da Câmara” ou que a pizza da esquina é ruim — na dúvida, some tudo.

Fala-se em combate ao discurso de ódio, em proteção da democracia, em pacificação do debate público. Mas quem define o que é ódio se não a sociedade por meio do seus representantes eleitos? Ou mais, quem diz onde termina a crítica e começa o ataque? A resposta é simples: no Judiciário. Retirar o poder do juiz que analise os impasses sociais subjetivados pelo contexto, não mitiga as crises sociais do Brasil. A liberdade plena não é confortável. Não é higiênica. É turbulenta, ruidosa, muitas vezes desagradável. Mas é o preço da democracia. Quando se admite que ideias circulem apenas após o carimbo do Estado, já não se vive uma democracia — apenas a ilusão de uma.

O julgamento conjunto dos recursos continuará no dia 25 deste mês

O STF tem o dever de julgar a constitucionalidade das leis. Mas transformar esse dever em instrumento para criar normas provisórias — “até que o Congresso legisle”, como dizem — é outro assunto. É usurpação. É legislar sob a toga. E quando isso se repete com frequência, não se trata mais de exceção, mas de método.

É claro que o Marco Civil pode ser atualizado. Talvez devesse mesmo. Mas isso se faz no Parlamento. Lá é o palco do dissenso, da disputa política, da representação popular — ainda que imperfeita, ainda que permeada por lobbies, barganhas e todas as mazelas que conhecemos. Melhor isso do que decisões monocráticas travestidas de consenso técnico, reforçando discursos radicalizados de um país dividido pela ignorância.

Dizer que o Congresso se omite é fácil. Difícil é respeitar seus tempos, suas escolhas, sua legitimidade. A democracia não é um programa de metas; é um processo vivo, sujeito a freios, limites e contradições. E a função do Supremo é resguardar esse processo — não substituí-lo.

Se um ministro do STF quer fazer leis, que largue a toga e dispute eleição. Até lá, a Constituição ainda deve valer para todos. Inclusive para o Supremo.


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Autor

  • Iago Yoshimi Seo

    Jornalista de profundidade, autor do livro A Teoria de Tudo Social: Democracia LTDA., ambicioso por política e debates

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