A sociedade tem dificuldade de aceitar a raiva, o ódio e arrependimento maternos. Toda mulher-mãe que se permita sentir ou que ouse falar sobre emoções e sentimentos que, supostamente, não podem coexistir com o dito “amor materno”, corre o risco de ser lida como uma mãe e uma pessoa ruim.
Isso porque nossa cultura é fundamentada na mística da maternidade, ou seja, na crença da existência de uma “essência feminina” pura, quase divina, que torna as mulheres aptas para amar e sentir apenas felicidade, ao realizarem sua verdadeira missão: gerar, criar e dedicar a existência à vida de um outro ser (inclua aqui filhos e maridos).
Essa mística idealiza, desumaniza, culpabiliza e reforça a ideia de que se a mãe sentir ou pensar algo que não combina com supostas “regras da natureza materna”, será uma pessoa horrível, que não merece a benção da maternidade.
Na era digital, inclusive, qualquer mulher que expressar a dificuldade ou o não desejo de lidar com o desamparo de ser o único amparo para uma criança, com a sobrecarga, a solidão ou a falta de alternância de cuidador, correrá o risco de ser atacada, pisoteada, acusada e cancelada.
Acontece que mulheres podem amar, sentir felicidade e alegria maternando. Assim como podem odiar, sentir raiva, tristeza, e tudo mais que seres humanos sentem. E acrescento que mães podem experimentar tudo isso em relação à maternidade, mas também em relação aos filhos!
Afinal, o amor pode coexistir com todos os infinitos sentimentos humanos, e é justamente isso que o torna tão especial: existir juntamente e apesar de todo o resto.
Obviamente, não tenho aqui o intuito de banalizar violências, que fique claro. Avançamos nos direitos das crianças, e não podemos retroceder aceitando qualquer tipo de violência – física, verbal, sexual ou psicológica – principalmente em relação às crianças. Inclusive, poder falar sem ser julgada ou atacada é um fator protetivo para as crianças. Raiva reprimida pode virar agressão, enquanto a raiva expressada e acolhida pode se dissolver e até se transformar em sentimentos e atos mais construtivos e amorosos.
Essa reflexão é apenas uma singela contribuição para a construção de uma cultura mais acolhedora com as experiências maternas reais.
Não podemos transformar o ódio da mãe, que é, na verdade, o ódio contra a maternidade compulsória e desamparada e contra as violências de gênero, em ódio contra a mãe.
Precisamos naturalizar o fato de que as mulheres-mães seguem sendo pessoas vivenciando uma gama infinita de emoções e sentimentos, mesmo em relação aos filhos.
Quem sabe aliando o cuidado e proteção das crianças com o amparo e acolhimento das mulheres-mães possamos construir uma cultura do cuidado com as PESSOAS?