Imagens: Paulo Rascão
Já contei por aqui que ao chegar em Terras Lusas, acabei por colocar a peça que faltava no quebra-cabeça de minha origem familiar, pelo menos do lado materno. Logo nos primeiros dias ao andar pelas ruas do Porto, as imagens de minha avó Aracy, de minha tia Amália e de minha bisavó Dulce vinham a todo momento em minha cabeça.
Estar geograficamente no local onde tudo começou pode parecer um pouco estranho, mas a sensação de se sentir familiarizado fisicamente com as pessoas na rua foi e é um ponto marcante nessa fase da minha vida, que já dura quase 10 anos.
Quando voltava para casa, após uma ida ao centro da cidade ou à feira, brincava com minha mulher dizendo que havia visto umas “20 vovós Aracy”, umas “30 tias Amália”, isso sem contar nas inúmeras “bisavós Dulce”, o que me dava, e ainda dá, uma alegria imensa. Afinal, como diz o ditado, só morre quem não é lembrado, né?
Conto isso porque minha bisavó era da Galiza, vizinha do Norte de Portugal. Ela migrou com seus pais e é a responsável por toda a linhagem dos “Martinez Fernandes” no Brasil.
Para mim, a bisa Dulce sempre foi uma senhora idosa, não importa a idade que tivéssemos (eu e ela). De temperamento fortíssimo, como todo galego que se preze, de conselhos sábios, e com uma pele vincada pela vida, o que mais me lembro dela era o carinho quando falava dos “primos de Portugal” que tinham prosperado com um famoso restaurante em Lisboa.
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Enrique, com sua simpaticíssima mulher Ana, são o nosso elo com os primos de Portugal. Doces, amáveis, generosos, e Enrique, possuidor de uma elegante timidez.
Ana e Enrique não iam com frequência ao Brasil, mas quando estavam em terras brasilis, a presença do casal era motivo de festa quando encontravam-se conosco. Se minha memória não falha, conheci Dona Esperanza, mãe de Enrique, e sua neta Patrícia, em uma visita que fizeram à São Paulo há exatos 46 anos.
Mas voltemos ao que interessa. Afinal, o restaurante dos primos é mesmo importante. Trata-se do Restaurante Bonjardim, também conhecido por Rei dos Frangos. Segundo consta foi o primeiro restaurante a fazer frango no espeto em Lisboa, conforme atesta um artigo de 1965 da Revista Flama.
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O pai de Enrique, Manuel Castiñeira Martinez, foi o responsável pelo sucesso do Bonjardim, após muito esforço e trabalho durante toda a vida. Ele trabalhou no restaurante até os 62 anos, quando faleceu em 1980, tendo Enrique assumido o restaurante aos 20 anos de idade, após ter cursado a primeira Escola Hoteleira de Lisboa.
Em agosto, o Bonjardim fará 75 anos, e é atualmente, um dos restaurantes mais antigos de Lisboa, junto ao Gambrinus, Cervejaria Alemã, Trindade e Ramiro. Dito isso, não há lisboeta que não conheça ou não tenha ouvido falar do restaurante com endereço na Travessa de Santo Antão, em Lisboa
Como não poderia deixar de ser, o ex-libris da casa é o frango no espeto, que tem a mesma receita e molho desde o dia em que abriu as portas. O prato pode vir acompanhado de batatas fritas, espinafre e arroz à brasileira. Além de um molho especial, uma espécie de pimenta, o jindungo africano.
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Se o sucesso do ex-libris da casa já não era motivo suficiente para dar água na boca e convencer o mais astênico dos seres a sair de casa e a prová-lo, Brandon Flowers, vocalista dos Killers, disse ter comido no Bonjardim o “melhor frango do mundo”, colocando o prato da casa em um outro patamar.
Após ter passado por dificuldades no tempo do Covid 19, o Bonjardim continua em plena atividade e vende mais de 600 frangos por dia nas duas casas que tem, uma bem em frente à outra.
Hoje o restaurante é comandado por Inês, filha de Enrique e Ana, e sua dedicação e perseverança só nos mostram que o restaurante certamente ficará por ainda longos anos a fazer frangos e história na cidade de Lisboa.
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Hoje enquanto escrevo essa coluna, me lembrei de muitos familiares que já não estão mais por aqui, mas que viveram comigo por algumas horas. Essa coluna é dedicada aos adoráveis primos de Portugal: Enrique, Ana, Inês e Patrícia (será que ela lembra dessa viagem?) e à memória de Manuel Martinez, Maria Esperanza, a minha avó Aracy e tia-avó Amália e a inesquecível bisa Dulce, na verdade Dulcíssima (era esse seu nome) Martinez Fernandes.