A influenciadora Virgínia Fonseca afirmou, diante da Comissão Parlamentar de Inquérito das Bets, que “não lucra com perdas dos seguidores”. Mas também disse que, se o lucro da empresa dobrasse, ela ganharia 30% a mais — cláusula padrão de contrato, segundo a própria. Virgínia, honestamente: de onde você acha que vem o lucro de uma casa de apostas?
Uma contradição dessa natureza em uma CPI, transmitida em rede nacional, e com uma das maiores audiências da TV Senado no YouTube, poderia ser caracterizada como ignorância total sobre o assunto, beirando a ingenuidade, ou total mau-caratismo? Seja qual for a posição da influenciadora para além desses dois pontos, a realidade é decepcionante.
Não é preciso formação em Harvard nem tutorial no YouTube para entender que, nesse tipo de negócio, alguém sempre perde para outro ganhar. E spoiler: esse “alguém” não é a casa. Tampouco é o influenciador. É o sujeito do outro lado da tela — muitas vezes pobre, desesperado, iludido. É ele quem paga a conta do seu contrato “padrão”. E não obstante, a influencer ainda jogou a carta divina, e apela para forças maiores. “Eu acredito na justiça de Deus”, disse.
O mais assustador, porém, não é o cinismo — já batido — com que se responde a perguntas simples (ou não se entende algumas delas). É o grau de naturalidade com que se aceita a inversão de papéis. Senadores gravam vídeos. Influenciadores se sentam em CPIs para dar aula sobre engajamento. E ninguém, absolutamente ninguém, ousa questionar se há ali algum traço de decoro. No Brasil, o mandato virou ring light e o mandato coletivo virou collab.
A CPI serviu para mostrar que o mandato político obedece à influência. O engajamento deixou de ser uma ferramenta para se fazer política, e se tornou um fim em si mesmo. Não me espantaria ver a Virgínia sair para deputada em um futuro não muito distante, e ainda ganhar o pleito.
Diante da CPI, Virgínia declarou que o espaço era diferente da internet — onde, segundo ela, “certos assuntos não poderiam ser tratados”. Quanta tolice, com o perdão da palavra. O que não pode ser tratado na internet, Virgínia, é a contradição que te sustenta, e o engajamento que não irá receber. Porque na CPI, ao menos, há ata e taquígrafo. No Instagram, há filtro.
O ponto mais relevante do depoimento foi a suposta confissão do uso da famigerada “conta demo”. “Nos mandam uma conta de publicidade”, disse ela, como se isso fosse trivial. Não é. Contas demo recebidas das empresa ao invés de meramente criada por ela, soam como simuladores, alterados para parecer que o jogo é ganho. Como algoritmos programados para premiar o influenciador e seduzir o seguidor. É o equivalente digital à isca no anzol. E o peixe é sempre o mesmo: o brasileiro que, entre pagar o gás e tentar mudar de vida com um palpite, escolhe o que o algoritmo mandou.
Enquanto isso, a senadora Soraya Thronicke se enrolava nas próprias perguntas. O que deveria ser inquirição virou monólogo confuso. E o Brasil, como sempre, transformou uma crise em espetáculo — e um escândalo financeiro em fanmeeting parlamentar.
E os números são menos glamourosos que as roupas do armário da depoente: cinco milhões de beneficiários do Bolsa Família gastaram R$ 3 bilhões em apostas online só em agosto de 2024. Isso representa quase um quinto do que o governo paga a famílias em situação de miséria extrema. Que ironia: o dinheiro que deveria comprar o feijão agora compra ilusão.
A verdade é que a internet não nivelou apenas o acesso à informação — nivelou também a esperteza, o cinismo e o discurso pronto. Hoje, qualquer um aprende a ganhar seguidores, mas poucos aprendem a assumir responsabilidade sobre o que vendem. E o que se vende, no fundo, não é produto nem aposta. É um sonho fácil, embalado por contrato difícil. É a ideia de que basta querer. E se não deu certo, a culpa é sua.
No fim das contas, o Brasil não precisa só de regulação. Precisa de senso. De noção. De vergonha. Porque, se continuarmos tratando escândalo como engajamento, logo vamos precisar de CPI para investigar o motivo pelo qual não temos mais república. Teremos só feed, filtro, e a eterna conta demo da moral pública.